TEMAS
POLÍTICA
"Migrações e Cidadania" (*)

Estes temas têm ganho muita actualidade e têm ganho muita visibilidade, o que desafia os quadros mentais que vínhamos formando, o que é bom porque nos obriga a reciclar e a reflectir de novo, mas por outro lado confirma alguns outros. Alguma reflexão que tínhamos feito acaba por ser confirmada pela realidade dos factos, umas vezes felizmente, outras infelizmente, como é o caso da situação humanitária no mediterrâneo.
Eu doutorei-me na área das migrações, o meu doutoramento é sobre o direito fundamental à cidadania, também na relação migrações e cidadania, e a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos escrevi este ensaio com o propósito de uma divulgação para um público mais vasto, procurei descodificar e simplificar algumas mensagens e fazê-lo circular por um público mais vasto, este livro encontra-se no Pingo Doce. Este ensaio reflecte em larga medida o meu pensamento sobre estas temáticas.
Um ponto de partida, que é o ponto de partida de reflexão para isto quando pensamos na sociedade portuguesa, é a questão demográfica. Em Portugal vivemos neste momento uma crise demográfica tremenda que põe em causa o nosso futuro colectivo, é um défice que é mais grave que o défice das contas, o défice das contas levou a uma actuação mais urgente e imediata, por ventura mais necessária no imediato, mas este défice demográfico é mais importante, convoca a nossa sustentabilidade enquanto nação e pode pô-la em causa e convoca a nossa atenção nos próximos tempos. É uma questão de emergência nacional que exige um esforço e uma percepção colectiva.
Na semana passada saíram os números do INE relativamente ao ano de 2014, hoje mesmo saiu o relatório do SEF sobre emigração, fronteiras e exílio, portanto estes dados têm vindo a ser confirmados pelas entidades públicas. Confirma-se a existência de um saldo migratório negativo, confirma-se a existência de um saldo natural negativo e portanto confirma-se o agravamento da situação demográfica em Portugal, apesar de tudo os dados não são totalmente negativos, nos dados do INE - Instituto Nacional de Estatística - relativamente ao ano de 2014 o início da inversão do saldo migratório negativo, desde 2010/2011 há pela primeira vez um sinal positivo com um ligeiro aumento da imigração e uma redução da emigração, há aqui um sinal positivo que tem que ver com uma melhoria das condições da economia portuguesa e uma melhoria da confiança que se verifica em relação ao país, que certamente afecta também os fluxos migratórios, mas não tenhamos ilusões quanto a isto, o saldo continua negativo. Esta é uma questão que tem de ser abordada seriamente.
A questão demográfica pode ser abordada por duas vias, que são também as duas vias que nos estão a tirar população, a via da natalidade e a via da emigração. A via da natalidade terá de ser abordada, não é a área da minha especialidade, mas uma coisa é clara, a via da natalidade não pode ser a única via para inverter a questão demográfica e sobretudo não é a via que atinge resultados no curto/médio prazo. Todos sabemos que a via da natalidade é muito importante, mas é algo que demora gerações a produzir resultados. Portanto a forma mais imediata de contrariar a questão demográfica é seguramente pela via da emigração, através da reversão dos fluxos migratórios. Tanto mais que, os dados também demonstram isso, quem migra, migra numa idade fértil, porque a decisão de migrar é uma decisão difícil, que exige esforço e que exige capacidade activa, portanto alguém que não está em idade reprodutiva dificilmente migrará. Por outro lado os números mostram também que as comunidades imigrantes em Portugal têm em média mais filhos que os portugueses, o que, mesmo já no cruzamento da questão da natalidade, tem um efeito multiplicador.
Uma outra questão relacionada com esta, é a ligação entre emigração e imigração, estas duas realidades eram tipicamente tratadas separadamente, se pensarmos bem, em termos de orgânica do Estado elas eram tratadas em departamentos separados, a questão da emigração era uma questão muito tratada no âmbito da polícia, pelo Ministério da Administração Interna e a questão da emigração tratado no plano dos Negócios Estrangeiros. Há necessidade, na minha opinião, de tratar estas realidades integralmente. A ideia da circulação migratória, isto é a ideia de que os fluxos migratórios hoje circulam numa lógica temporária, não necessariamente permanente, leva-nos a pensar a gestão dos fluxos migratórios integradamente. A própria ideia de saldo migratório, isto é a diferença entre as saídas e as entradas, para podermos gerir adequadamente o saldo migratório, essa gestão também tem de ser integrada de fluxos. Num país como Portugal que tem ao longo da história mudado com frequência e com relevo o seu perfil migratório, de um país que nos anos 60 era um país com grande emigração, nos anos 90 com acentuada imigração e que agora está na situação de saldo migratório negativo e portanto com algum desequilíbrio dos fluxos, é um país que não pode deixar de pensar nestes fluxos integradamente. Ao mesmo tempo que pensa na captação de estrangeiros pensa também no regresso de portugueses que estão fora. Essa é uma realidade incontornável, porque hoje nós sabemos que não são os números que alguns demonstram com estrondo, mas é inegável que há um movimento acentuado de saída de cidadãos portugueses do país nos últimos 4/5 anos para projectos de trabalho e essa é uma realidade para que o país tem de olhar e as políticas públicas devem olhar com cuidado. No meu livro refiro, por exemplo, países como a Coreia do Sul e Taiwan que desenvolveram políticas activas com grande sucesso para atrair de regresso os seus cidadãos.
Quando falamos de políticas migratórias, estas políticas devem ser neutrais relativamente à nacionalidade, estamos a pensar atrair para o país pessoas com capacidade de acrescentar valor ao país. Se formos capazes de atrair portugueses, também vamos ser capazes de atrair estrangeiros e vice-versa. Estas experiências mostram que esta capacidade de atracção tem ainda um efeito de retenção, aqueles que cá estão podem não desejar sair. Vamos a exemplos práticos, se instalarmos em Portugal um centro de excelência de investigação cientifica, como é a Fundação Champalimaud, um centro de excelência de investigação cientifica que capta talento internacional, há estrangeiros que trabalham ali, há portugueses que estavam em grandes centros internacionais no exterior e que decidiram voltar porque encontram em Portugal uma oportunidade para desenvolver o seu talento que não tinham no passado e portanto isso dá-lhes a oportunidade de voltar e ainda, certamente, irá ter um efeito de retenção de pessoas que sem essa oportunidade em Portugal teriam que sair e tendo essa oportunidade de sair podem ficar. Há aqui um efeito global de atracção e retenção que me parece fundamental. Isto, evidentemente, exige da parte dos Estados uma atitude proactiva e o desenvolvimento de políticas proactivas de captação de migrantes, porque esse é um aspecto importante, a própria OCDE reconhece isso. Há aqui uma mudança das migrações mundiais, muito por força da globalização, há aqui uma mudança do próprio perfil global de migrações. As migrações deixam de ser apenas laborais, as migrações laborais são migrações que exigem muito pouca proactividade dos Estados, não estou a dizer que isso é mau, mas é a realidade. As migrações laborais passam essencialmente pelo funcionamento do mercado de trabalho. Se há uma empresa que tem necessidade de trabalhadores, não encontra esses trabalhadores em primeira linha no mercado interno, vai buscar esses trabalhadores ao mercado internacional. Portugal viveu isso com as obras públicas dos anos 90, precisava de pessoas para construir, não tinha essas pessoas disponíveis no mercado interno, ia buscar esses trabalhadores ao mercado internacional. Não tenho nada contra isso, acho bem, mas isso é insuficiente num mundo em corrida pelo talento, se as empresas têm necessidade de trabalhadores e os vão buscar ao mercado internacional, o Estado não deve interferir nessa realidade, a não ser naquilo que é a relação típica dos aspectos migratórios, controlando aspectos básicos que em todo o mundo se controlam, como se essas pessoas representam uma ameaça para a segurança nacional ou se essas pessoas representam uma ameaça para a saúde pública, há um conjunto de critérios que a lei estabelece, e já nem sequer é a lei nacional mas sim a europeia, que estabelece critérios de controlo destes fluxos. Se esse screening é passado e as pessoas têm trabalho deixa-se o mercado funcionar.
Da minha perspectiva isto é insuficiente, porque os Estados que vivem no mundo de corrida e competição pelo talento devem desenvolver atitudes proactivas e políticas públicas proactivas de atracção deste talento. Hoje encontramos outros perfis de migrantes, hoje em Portugal, por exemplo, no último relatório da OCDE de 2014 que dizia que Portugal foi um dos três países da OCDE que em 2014 mais cresceu em estudantes internacionais, as universidades portuguesas têm hoje uma capacidade de atracção de estudantes internacionais, isso é muito importante porque são pessoas qualificadas que terminando os seus cursos podem decidir ficar em Portugal a trabalhar e são pessoas com quem Portugal já estabeleceu uma relação mútua e prévia de relacionamento e isso é muito importante em qualquer processo de aproximação e recrutamento. Mas também há outros perfis, como os empreendedores, os investidores e até os reformados. Hoje encontramos novos perfis de migrantes que têm necessidades específicas e o país deve corresponder a essas necessidades com uma política migratória proactiva que, no fundo, satisfaça aquilo que essas pessoas procuram, porque essas pessoas vêm trazer valor acrescentado ao país. Essas políticas passam, naturalmente pelo sistema de vistos, o sistema de vistos tem de ser adequado a esta realidade e também passa pela integração, a integração que estava pensada para as migrações laborais e para os problemas das migrações laborais, hoje tem de se expandir para estas novas realidade. Estávamos preocupados com a integração de quem procurava Portugal para trabalhar e fomos internacionalmente reconhecidos como tal. Ainda na semana passada saiu um relatório MIPEX, que reconhece Portugal como segundo país, do universo de países estudados, com melhor experiência de integração de migrantes, mas temos de perceber que esta experiência de integração tem de se adequar a estas novas realidades, portanto integrar um migrante laboral não é a mesma coisa que integrar um estudante ou que integrar um investidor ou reintegrar um português que estava no estrangeiro e decidiu regressar. É a olhar para estes novos perfis que percebemos as necessidades da nossa política migratória e a face destas novas tendências e realidades. Há algo que está em curso, mas que ainda não está implementado, que é o que se passa no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, que é o desenvolvimento de uma política de vistos através de pontos, que é um sistema que permite a cada momento desenhar o perfil de migrante que o país precisa. Aquilo é uma grelha, totalmente online, alguém em qualquer parte do mundo deseja ser um candidato a migrante, nesse formulário fornece dados sobre as suas características pessoais, educação, conhecimento de línguas, mas pode ir para soft skills, talentos, saber se é um artista ou um empreendedor. Toda essa informação pessoal é fornecida na candidatura e o Estado de destino define em cada ano o perfil de migrante que quer receber e a seriação é feita através de um sistema de pontos que vai valorar diferentemente cada um destes elementos que são fornecidos na candidatura. Isto é algo que pode agilizar o modo como nos relacionamos com os candidatos a migrantes. Aqui há restrições da União Europeia que teriam de ser acauteladas, mas não me parece incompatível um sistema de pontos com o sistema europeu, que aliás já prevê também a diferenciação de perfis, como o Blue Card Directive, que é uma directiva com muito pouco sucesso, está neste momento a ser revista e deve ser revista no sentido em que não podemos definir uma política baseada no Top Down. Faz muito mais sentido uma política que à escala europeia foi iniciada em Portugal que é a política dos vistos Gold, que teve sucesso prático. Se compararmos os vistos Goldo com a Blue Card não há dúvida de qual foi a mais bem sucedida, apesar de ainda estar a ser ajustada, do ponto de vista da procura e do mercado foi mais bem sucedida.
Temos aqui estas novas realidades migratórias também a exigirem uma nova política migratória, num momento como aquele que Portugal vive é muito importante uma gestão integrada do binómio emigração - imigração e é muito importante pensar uma política de relação com a diáspora portuguesa e de regresso sustentável dos portugueses que estão fora. Se nós queremos equilibrar o saldo migratório, e isso é absolutamente vital, talvez se possa começar pelos cidadãos nacionais que saíram e que poderiam voltar. Esse regresso deve ser feito com base em políticas públicas, também elas sustentáveis. O regresso não pode ser forçado, tem de ser feito através de incentivos correctos, mas aqui podemos ser muito neutrais em relação à nacionalidade. Se estabelecermos os incentivos correctos, se evitarmos as discriminações, se colocarmos as pessoas em situação de igualdade, sejam portugueses ou não, se eliminarmos discriminações, vamos ter sucesso nesta política. Se garantirmos que os que estão fora têm o mesmo direito de acesso aos incentivos ao empreendedorismo que têm os que estão dentro e que o facto de estarem fora, de não estarem presentes fisicamente, não lhes coloca obstáculos burocráticos adicionais, estou convencido que isso fará muito por estas pessoas. Portanto, se nós limparmos a nossa burocracia, se nós informatizarmos procedimentos, se nós naturalmente fizermos um esforço para manter essa relação, para prestar informação, etc., estou convencido que isso desempenhará um papel fundamental e importante para esse objectivo. Portanto, não temos de estar preocupados com um discurso muito alegórico e muito vazio, devemos estar preocupados com acções concretas, por exemplo, não quero fazer publicidade mas fazendo, esta semana foi lançado um novo portal do Alto Comissariado para as Migrações que faz justamente isto, quer dizer que com tranquilidade e discrição têm um instrumento informático em que uma pessoa abre aquele portal e diz assim: "Quem sou eu?" e eu anuncio-me e aquele portal vai-se desenhar à minha vida e vai-me dar a informação que eu preciso. E é este tipo de medidas práticas que podem depois ter efeito, seja no regresso dos portugueses, seja na atracção de estrangeiros.
Muito rapidamente, só aqui para referir também um outro ponto um pouco mais teórico que tem o livro mas que pode dar algum azo a discussão e debate também, enfim um apontamento apenas, para falar no controlo de fronteiras, que é um tema também sempre muito discutido e muito interessante. Saber-se o que é isto do controlo de fronteiras, o controlo de fronteiras é legítimo, isto que se está a passar, por exemplo na fronteira do Mediterrâneo, é alguma coisa que se deva passar? É assim que devemos actuar? Porque há uma teoria a que várias pessoas em Portugal se dedicam, até há um artigo muito interessante do Henrique Monteiro no Expresso sobre isso, apelando à união de todos os migrantes do mundo porque há uma tese que eu acho muito interessante e até muito convincente, sobre a ideia de fronteiras abertas, esta ideia de que não é legítimo controlar as fronteiras e que seres humanos são todos iguais e portanto não é legítimo para quem está do lado de cá impor um muro a quem está do lado de lá. Eu devo dizer que é um discurso muitíssimo poderoso e muitíssimo convincente sobretudo para quem, como penso que todos nós, tem convicções humanísticas e pensa no ser humano com uma lógica de igualdade.
Agora, vejamos que nós não podemos ser idealistas no modo de olhar estas questões, que são questões muito práticas, muito reais e com consequências muito sérias na vida das pessoas e dos países. Por um lado, por muito apelativa que seja esta ideia é evidente que um estado ou um conjunto de estados que alivie as suas fronteiras no mundo desregulado de migrações, é imediatamente invadido ou inundado por movimentos migratórios, por uma pressão migratória sem precedentes, o que colocaria em crise a sua própria estrutura interna. E, portanto, isso era no fundo um paradoxo, não só não éramos capazes de assegurar o bem-estar das nossas populações como também o daquelas que nos procuram, portanto, isso seria, no fundo, paradoxal, poria em causa a nossa própria sobrevivência colectiva. Portanto, isso nunca poderia ser feito num mundo desregulado, e depois, mesmo do ponto de vista da teoria política, e eu sou muito sensível ao princípio democrático, aliás já vou falar sobre isso a propósito da cidadania. Mas repare-se, quando uma população pretende regular os seus movimentos fronteiriços e nós estamos a dizer que uma pessoa que está do outro lado a querer entrar deve poder entrar por sua decisão, no fundo nós estamos a dizer que a decisão individual daquela pessoa que quer entrar vale mais do que a decisão de todos aqueles que estão no lado de cá e que dizem que aquela pessoa não deve entrar, portanto um jogo democrático também. No fundo no desenho das regras há um jogo democrático, quer dizer, há uma comunidade política que desenhou uma determinada regra e essa regra vale mais que a decisão individual de alguém que quer entrar, mesmo no valor do principio democrático, isto faz algum sentido. Contando que, tenho que se fazer esta ressalva, o desenho do princípio das políticas migratórias e do controlo fronteiriço não é livre, os estados são obrigados a princípios internacionais e de direito internacional público a que têm de obedecer. Evidentemente que uma política de gestão de fronteiras não pode ser uma política discriminatória em função do género ou da raça ou da origem ética, não pode discriminar em função das características pessoais dos candidatos porque o desenho pode ser feito em função das qualificações que a pessoa apresenta, porque essa é a relação que vai estabelecer com o estado. O que não pode ser é discriminatória em função de características que as nossas constituições consideram à partida como características suspeitas, discriminatórias e que não podem ser materialmente justificadas em função disto. No fundo, se eu disser na Blue Card que estou à procura de qualificados, isto tem uma justificação material. Eu já não tenho uma justificação material para dizer: "Eu não vou aceitar migrantes daquele país ou daquela região do mundo ou daquela religião", aqui não há uma justificação material para isto. E se a justificação material é: "Ah é porque essas pessoas representam um risco para a segurança nacional", isso é certamente discriminatório porque o risco para a segurança nacional tem de ser aferido em função da pessoa individualmente considerada e não em função da pertença a um grupo étnico ou religioso, naturalmente que isso seria discriminatório e não me parece aceitável.
Em abstracto, o desenho de uma política migratória, que não seja discriminatória, e que seja materialmente justificada faz sentido, o direito internacional admite e, portanto, não tenho nada a opor a isso, ou seja, não subscrevo a tese das fronteiras abertas embora reconheça que ela seja de contributo convincente. Exemplos de critérios que podem ser utilizados na exclusão, da segurança, da saúde, critérios económicos, o que no fundo vai contribuir ou não para o desenvolvimento do estado. Eu sei que são critérios que podem ser questionáveis, ainda agora tivemos uma alteração, fizemos um pacote legislativo sobre terrorismo, que inclui uma alteração à lei da imigração e à lei da nacionalidade, justamente para incorporar esta matéria da segurança, por causa dos ataques terroristas e do desenvolvimento do estado islâmico que houve em consequência de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, porque isto é relativamente pacífico, como é por exemplo a questão da saúde. No ano passado houve uma epidemia de Ébola e, nesse caso esses tipos de controlos podem ser introduzidos. Os critérios económicos são um pouco mais polémicos, mas também podem ser introduzidos. Agora, volto a dizer, na minha perspectiva não são aceitáveis critérios arbitrários ou puramente discriminatórios.
Agora vou falar da questão humanitária e da situação do Mediterrâneo, que é uma situação recente que nos tem entrado em casa e que é muito importante. O que se passou no Mediterrâneo tem uma origem muito simples de explicar, sendo que esta questão não é nova, já acontece há vinte e cinco anos, mas havia ali um tampão que era a Líbia e o Cairo, que aliás tinha ali um acordo nunca assumido com a Itália para fazer esse controlo e para fazer esse tampão. Já era sabido que havia campos de refugiados no norte da Líbia, onde não se aplicavam evidentemente as convenções de direitos humanos, muito menos da convenção europeia, mas que funcionavam como tampão. A situação não era ideal mas pelo menos não tinha esta expressão, não tinha essa necessidade. Quando rebenta o regime líbio e a Líbia se torna um estado descontrolado, a questão tornou-se também ela própria descontrolada porque a Líbia deixou de ter essa função e esses movimentos passaram a entrar por ali, como se os migrantes fossem todos Líbios, no entanto claro que não são, aliás olhando para os barcos vê-se que não são, a maior parte deles são subsarianos. Certamente bastantes refugiados Sírios, mas há ali uma grande percentagem de migrantes subsarianos que utilizam aquela rota tradicional. Rota essa, e este ponto não podemos deixar de olhar para ele, rota essa que é explorada por redes ilegais de tráfico de migrantes e, redes ilegais que devem ser activamente combatidas, até porque elas expõem estas pessoas a risco de vida, transportam-nas em condições sub-humanas e retiram-lhes recursos financeiros significativos. Por isso, não são os mais pobres que emigram porque os mais pobres não têm dinheiro e em média uma viagem destas custa dez mil dólares que, com um grande sacrifício, estas pessoas pagam às redes ilegais para poder fazer a travessia naquelas condições e, em muitos casos , com a perda da própria vida. E, depois, a primeira reacção a olhar para isto é dizer "Bom, mas então vamos criar aqui quotas de refugiados e vamos pensar na sua recolocação interna na União Europeia".
Há aqui um equívoco sobre isto, é que refugiados e migrantes não são a mesma coisa, têm aliás um tratamento, do ponto de vista internacional, completamente distinto. O refugiado é alguém que se qualifica, à luz da convenção internacional de protecção dos refugiados, como uma pessoa que no seu país de origem é objecto de uma perseguição, portanto apresenta um receio credível de que a sua vida ou integridade física pode estar em causa por uma perseguição. Isto foi interpretado historicamente como dizendo respeito a perseguições políticas, guerras civis, situações de conflito, etc.. Nos termos da convenção, existe um direito individual da pessoa apresentar o seu caso perante uma autoridade e, se essa autoridade (que pode ser uma autoridade administrativa, eventualmente revisto por um juiz) entender que a situação que é apresentada é credível, a pessoa qualifica-se para a atribuição do estatuto de refugiado, e portanto para a concessão do chamado asilo. É evidente que a convenção tem vindo a ser interpretada em termos um pouco mais amplos, mas não tenhamos dúvidas sobre isso, ela vai ser sempre interpretada restritivamente. E, portanto, quando nós olhamos para aquelas balsas de pessoas que vêm, apenas uma percentagem muito baixa dos que ali estão se qualificarão efectivamente para asilo e, portanto, poderão apresentar às autoridades o tal caso credível e poderá ser-lhes concedido o estatuto de asilo. E os outros, o que são? Os outros são chamados migrantes voluntários. É evidente que nós sabemos que de voluntário tem muito pouco, porque uma pessoa que se coloca naquela situação e que aceita correr risco de vida para chegar à Europa, não é propriamente a decisão mais voluntária que nós possamos imaginar. Mas, juridicamente, são qualificados como migrantes voluntários, isto é, alguém que se apresentou na nossa fronteira voluntariamente e que quer entrar. É evidente que não o fez pelas formas legais, não utilizou os canais legais, mas ainda assim é alguém que quer entrar e, portanto, nós aqui temos em primeiro lugar obrigação de prestar apoio humanitário aquelas pessoas e penso que aí a União Europeia teve a resposta certa, que é debutar uma agencia chamada Frontex que gere dois programas Poseidon e Triton, que no fundo fazem esta gestão, há coisas que têm problemas de direito internacional público, porque é preciso um mandato das Nações Unidas e é uma questão um pouco complexa mas enfim, esta Agência e estes programas devem em primeira linha prestar apoio humanitário a estas pessoas e garantir que estas não morrem em mares europeus, porque essa é a tradição europeia e não pode ser traída. E, depois, em segunda linha há que tomar uma de duas decisões: ou essas pessoas são acolhidas como migrantes e, portanto nós atribuímos-lhe no fundo o título válido para residirem nos nossos países da União Europeia, ou essas pessoas regressam aos seus países, portanto são devolvidas aos seus países, evidentemente às condições que nós imaginamos que elas tinham para se colocarem naquela situação. E, eu aqui, sempre disse há aqui uma questão que é uma decisão política. Isto vem na sequência do que eu acabei de dizer, portanto, se eu achasse que as fronteiras eram abertas, nós éramos obrigados a receber estas pessoas todas, e isso tem de ser consequente, portanto não subscrevo a tese das fronteiras abertas, portanto o que se põe aos nossos estados é uma decisão política que é a de saber se admitimos estas pessoas (depois de lhes prestar assistência humanitária) como migrantes, ou se, pelo contrário, os devolvemos às situações de onde saíram.
Transcrição da palestra de Gonçalo Matias (*)