TEMAS
POLÍTICA
O Sistema Político e Chefia de Estado em momentos de crise política e social (*)

Em primeiro lugar, quero agradecer muito a oportunidade de vir a esta Casa - uma Casa que apela à Democracia e à Liberdade - para vos falar do Sistema Político e da falta que fazem esses dois valores ao regime que temos. Falta-nos hoje, ontem, e de há cento e dois anos a esta parte, muita coisa, mas sobretudo Democracia e Liberdade. E falta-nos também a humildade e a sabedoria para reconhecermos que este não é um sistema perfeito, um paraíso político.
Em segundo lugar, não posso deixar de agradecer a presença de quantos me dão o gosto de aqui estar e que me oferecem a ilusão de poder chegar a todos os portugueses.
Não me esqueço da resposta que ouvi ao Arq. Gonçalo Ribeiro Teles, quando lhe perguntaram "o que é que é necessário para Restaurar a Monarquia? Só preciso de falar com cada um dos portugueses. A sós."
Porque realmente o grande obstáculo à discussão profunda, séria e sobretudo profícua sobre o nosso sistema político, numa conjuntura tão sofrida como a que estamos a viver é, para além da ignorância dolosa de muitos dos nossos políticos, que enganam e vivem do erro alheio, para além dessa ignorância, dizia, o grande obstáculo é a mitologia com que vestiram a República, essa senhora de mau porte e pouca roupa, sobretudo da cintura para cima e que nós não gostaríamos de ter por nora.
E os mitos com que a vestiram - ou melhor, com que a taparam - são sobretudo dois, e voltamos a estes conceitos centrais que esta Casa celebra: democracia e liberdade. Como se a "democracia" e a "liberdade" se referissem mais à forma de organização de um Estado do que ao próprio sistema de Governo. Como se tivéssemos, no simplismo de um juízo maniqueísta, bons - os que sustentam o progresso e a modernidade, a República, portanto, e os maus - os que advogam o retrocesso civilizacional, o passadismo, os monárquicos, com os seus títulos de nobreza e bigodes retorcidos. Bons de um lado, maus do outro. Do lado dos bons, o Irão e Cuba, essas verdejantes democracias, que só têm lições a dar ao mundo. Do outro lado, o dos maus, a Inglaterra e a Dinamarca, vandálicas tiranias tão opressoras quanto corruptas. Aqueles são os pressupostos, estas as absurdas conclusões que eles necessariamente autorizam.
Portanto, estamos a falar de coisas diferentes. Até porque, na verdade, mesmo em Portugal, se vivia uma democracia muito mais representativa e se experimentava uma liberdade muito mais arejada em 1909 do que em 1911. Em nome da dita democracia e da apregoada liberdade, o que se fez foi, pura e simplesmente acabar com elas. Com a democracia e sobretudo com a liberdade.
Mesmo ao nível da liberdade de expressão e de representatividade nas assembleias legislativas. Em 1909 o PRP existia, legalizado, concorria a eleições e tinha deputados que nas câmaras falavam com o à vontade dos irresponsáveis e proferiam os dislates mais alucinados, diziam o que Maomé não ousava pronunciar do toucinho. Pois bem, logo alcançadas as mais amplas liberdades que o cinco do dez tornou possíveis, encheram-se preventivamente as prisões de criminosos de pensamento, reduziu-se drasticamente o universo eleitoral (nem pensar no voto feminino tão apegado devia andar do beatério) e impediu-se a representação política monárquica. Foi assim. Isto são factos, factos que andam esquecidos e que andaram arredados das celebrações milionárias do Centenário da República. Mas, hoje, isso é história. E se disto aqui falo, agora, é só para recordar que, como diz o Povo, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.
Mas é história e não é dela que nos alimentamos. Como dizia há bem pouco o Presidente da CML, numas evocações clandestinas de que ouvi falar, um povo sem memória é um povo sem futuro. Não podia estar mais de acordo. Mas a minha memória consegue ir para lá do século XX. A história desta aventura colectiva que é Portugal não começou em 1910, ao contrário do que muitos pensam.
Portugal começou a 5 de Outubro, sim, mas do longínquo ano de 1143. É com a assinatura do Tratado de Zamora que todo um Povo, inspirado pela acção mobilizadora do Rei, impõe a existência de um novo Estado soberano, de uma Nação livre e independente.
Mas isto, como digo, é História. E mesmo tendo memória, uma memória crítica, mas não selectiva, devemos estar apostados, sobretudo, em construir Futuro.
Portanto, aqui chegados, a pergunta que temos de fazer é esta: que sentido faz manter o actual sistema político?
É evidente que, hoje, temos de ter algum pudor quando falamos do sistema político, porque as preocupações das pessoas são compreensivelmente outras. Hoje, as pessoas temem o que o futuro reserva às suas vidas. À sua e à dos seus filhos.
Mas os que não conseguem renunciar à inteligência não podem perder o sentido da importância, mesmo quando acossados pelo dever imposto pela urgência. E aquilo de que vos falo não é de urgência. Não é de défices nem de dívida pública. É de dignidade, é de sentido patriótico, é de exemplo. Falo-vos, no fundo, de percebermos qual é o papel de Portugal no Mundo e junto dos que, nos 4 cantos do planeta, falam e sonham em Português.
O que temos, meus amigos, não é bom. E não sendo bom, o melhor é ser mudado.
Porque na verdade, nunca como agora foram tão perceptíveis as vantagens de uma organização do Estado que privilegia o princípio da continuidade e que potencia a agregação de esforços e a mobilização de todos em torno de um desígnio comum. De um projecto nacional. E isso é muito mais facilmente alcançado pelo poder magnético, inspirador, mobilizador, da Coroa, pela sua ressonância axiológica e ética, do que pelo artificialismo da construção jurídica de uma chefia de Estado electiva, ancorada num jogo de legitimidades enganador.
Não gosto de fulanizar, porque entendo que os regimes estão acima das pessoas que em cada momento os servem, mas convido-vos a um exercício especulativo. Será que o nosso Presidente, qualquer dos nossos presidentes, de Cavaco a Arriaga, passando por Craveiro Lopes e Sampaio, será que o nosso presidente teria a capacidade de encher as ruas de Lisboa como vimos acontecer há pouco tempo, em Londres, por ocasião do Jubileu da Rainha Isabel? Aquilo foi para ela? Foi por causa dela? Tudo o que vimos, todos aqueles tributos sentidos de uma homenagem sincera, dos artistas à gente anónima, tudo aquilo foi para ela? ou foi antes para o que ela representa? Toda aquela genuína satisfação foi por causa dela ou por causa daquilo que antes dela, os seus pais e avós, já representavam? E a maneira como foi festejado este acontecimento em toda a Commonwealth? O que estava ali em causa era ela? Não, não era.
Como digo, não quero duvidar do carisma nem do poder de mobilização dos sucessivos presidentes da república portuguesa, mas sinto que aquela expressão de afecto, de reconhecimento institucional não seria possível aqui. Basta ter presente o triste espectáculo que nos foi oferecido há uma semana na praça do município ou no Pátio da Galé. Até podemos ter, e temos, como diz o Senhor Ministro das Finanças, o melhor povo do mundo. Mas infelizmente, não temos o melhor sistema político do globo.
E o problema infelizmente não está nas pessoas. É um problema genético do próprio regime, que prefere a pureza asséptica da ilusão formal à experiência de uma vida de serviço.
Como dizia Mouzinho de Albuquerque ao seu Príncipe, D. Luís Filipe, o mesmo que os paladinos da liberdade e em nome dela abateram em 1908 com apenas 20 anos de idade, "para um Príncipe, nascer é assentar praça, que só pode ter baixa para a sepultura!" Do berço à sepultura, uma vida de entrega, de aprendizagem, de serviço.
E em república? Como se assegura a equidistância? Como se pode imaginar possível ao Chefe do Estado exercer uma magistratura de imparcialidade se dez minutos antes de se afirmar imparcial era descaradamente uma das partes?
Se virem bem, desde 1976, todos os chefes de Estado, antes de serem eleitos, foram chefes de partido (Cavaco, Sampaio, Soares). Com uma excepção, a do Gen. Eanes, que só foi chefe de partido depois de abandonar Belém. Mas até o Gen. Eanes foi chefe de partido. A chefia do Estado é, portanto, encarada como "prémio carreira" da actividade partidária.
Quem pode acreditar que alguém inebriado pelos vapores que da politiquice partidária sempre emanam, é capaz da isenção?
E isto é particularmente sensível na profunda transformação que estamos a viver. É preciso que na chefia do Estado esteja a voz, reconhecida, da autoridade. De uma autoridade que se funda na credibilidade pessoal, familiar e de uma legitimidade histórica. É de credibilidade que estamos a precisar. Hoje e sempre.
Que credibilidade pode ter um árbitro que foi capitão de uma das equipas?
Que credibilidade pode ter quem chama a atenção para o modelo de desenvolvimento que nos levou a este estado calamitoso se foi ele que o inaugurou quando era chefe do Governo?
Que credibilidade pode ter quem defende agora o regresso ao mar quando há vinte anos, pela sua acção governativa, arrasou a nossa frota pesqueira?
Que credibilidade pode ter quem, apesar da lágrima fácil, querendo derrubar um governo, dissolve um parlamento sustentado por uma maioria absoluta no exacto momento em que, a contento do chefe do Estado, muda a liderança do seu partido de origem, abrindo-lhe assim as portas da governação?
Que credibilidade pode ter quem defende um império de cultura e a efectiva presença portuguesa no mundo tendo agido como agiu na barafunda da descolonização?
Não podem ter credibilidade os que vivem apenas da conjuntura!, os que se movem pelos ciclos eleitorais e pela conveniência da sua própria eleição, confiando na redenção que a nossa curta memória e nenhuma exigência lhes vai conferindo. Estes não têm nem podem ter credibilidade. Como não tem qualquer autoridade o regime que faz da incredibilidade a pedra angular da sua suposta ética.
Cento e quarenta e três anos antes do início da Monarquia, Portugal não existia. Se nada fizermos, cento e quarenta e três anos depois do fim da Monarquia, Portugal não existirá!
[APLAUSOS]